Este Blog tem por função abrir reflexões e visibilizar o que se produz de arte contemporânea na Bahia. Sua estratégia principal é criar interlocuções entre artistas, críticos, curadores, poetas e pensadores da cultura de variados eixos de interesses. Este espaço será depositário de variadas formas de pensamentos que ajudem na compreensão dos processos contemporâneos que formam o perfil das ações culturais baianas e suas significações dentro do panorama brasileiro. Vauluizo Bezerra

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Este ex-voto foi recolhido em São Francisco do Canindé (CE). Com ele, com a sua forma, com a minha “escrita”, com a colocação do rabicho de porco, unindo o meu conteúdo à linguagem contemporânea da época é que começou realmente a fase antropomórfica, descrita acima com detalhes.

Entretanto, se alguém, depois de ler este texto e ver as reproduções acima continuar comparando minhas pinturas com a de Botero, não tenho mais nada a dizer.



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A temática é livre. Se colocarem um modelo masculino ou feminino, gordo ou magro, diante de dez pintores ou de dez fotógrafos, ao final teremos dez pinturas e dez fotos, cada uma diferente da outra. Depende principalmente do uso da técnica e do olhar do artista. Entretanto, quando o artista coloca as figuras de Botero diante de seus olhos e faz uma pintura intencionalmente parecida, aí é cópia.

Pablo Picasso, dizia: “A pintura não foi feita para decorar apartamentos. Ela é um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo”.

Naturalmente, para a realização de uma obra de arte, além da parte criativa, necessariamente têm de ser levados em conta muitos fatores técnicos e teóricos e, sobretudo, ser usada uma linguagem contemporânea. Aliado a isso tudo, você necessita ter um discurso, um conteúdo e a capacidade de criar uma fatura, um modo próprio que o distingue dos outros pintores. Resolvendo este problema, mesmo sem ver a assinatura, sabe-se quem foi o artista que pintou o quadro.

O artista é como outra pessoa qualquer, cada um com um carisma, recebido pelo Espírito Santo. O verdadeiro artista é um ser de uma complexidade muito grande, o que leva pessoas não habilitadas, a avaliações completamente equivocadas sobre o seu trabalho. Principalmente quando ele se expressa através de qualquer linguagem contemporânea, mostrando em seu conteúdo a realidade, as denúncias contra as desigualdades sociais, o amor ao próximo, a fragilidade do caráter humano, ou abraçando a luta dos menos favorecidos, isso leva também ao surgimento de fofocas, invencionices e maledicências. Pelo contrário, são aplaudidos os que fazem “arte oficial”, “chapa branca”, de fácil leitura, a chamada “Estética da Norma”, aqueles que exploram o lado folclórico e o bonitinho, os que, quando obtêm um sucesso comercial, se repetem por anos a fio, fazendo “xerox” do seu próprio trabalho. Não custa nada repetir.

Certa ocasião uma pessoa, formada, bacharel em direito, e que até ocupou cargos no governo, chegou para mim e disse: “Arte é tudo o que eu acho bonito e gosto”. Diante de tamanha mostra de superioridade, eu nada respondi, e de nada adiantaria falar alguma coisa.

Acho que as pessoas não têm obrigação de serem “expert” em arte. Entretanto, podem adquirir sensibilidade através da cultura e da informação. Acho que as pessoas devem ser competentes dentro de suas atividades profissionais, mas se tiverem ou adquirirem sensibilidade para gostar de arte, melhor.

Nesta minha fase iniciada em princípios de 1980, à proporção em que era divulgada através de inúmeras exposições, salões, bienais, reportagens e textos críticos, começaram a evidenciar-se, não por todos, infundados ataques chamando-a de uma arte de agressão e uma arte feia. Quanto à acusação de agressividade na fase antropomórfica onde o tema é o caráter humano, é absolutamente infundada. Eu mostrava o que não se deve fazer. Eu mostrava o mal para ser corrigido. Mas algumas pessoas se espelhavam nos trabalhos e, aí sim, me agrediam. É incrível a facilidade com que, por diversos motivos, algumas pessoas, insensatamente, julgam outras ou o seu trabalho.

Já o crítico José Roberto Teixeira Leite afirma, com muita propriedade, num texto em que demonstra perfeito conhecimento de minha pintura, afirma, entre outras coisas, que a minha pintura daquela fase é “moralista e não agressiva”. Também o crítico Frederico Morais assim termina um dos muitos textos que escreveu sobre o meu trabalho:

Não é que a miséria se desvaneceu, como por milagre, ou que a corrupção dos sentimentos tenha sido extirpada do ser humano. O que Scaldaferri parece ter percebido é que por mais perversa que seja a vida do homem, não importa o grotesco ou o ridículo das situações, existe ainda dignidade e esperança. Esta a lição da pintura atual de Sante Scaldaferri.

Coincidentemente, e não é a primeira vez que divulgo este fato, certa vez Dom Timóteo Anastácio Amoroso, conversando comigo me disse, não exatamente nestas palavras, que o homem pode seu mau, ter um caráter ruim, entretanto todos temos um lado bom. E é por este lado que devemos olhar o próximo.

Quanto ao “feio”, o crítico Aldo Tripodi, na sua dissertação de mestrado sobre o meu trabalho, “Sante Scaldaferri – Uma Poética do Feio”, explica muito bem.

A seguir transcrevo um trabalho de um aluno de Aldo Tripodi, tal a sua seriedade e lucidez.



O “FEIO” É MUITO BONITO, MAS DIFÍCIL DE ENTENDER

A poética do feio

De um homem com fome, nada se pode exigir. A fome desnorteia, avilta, deteriora perspectivas. Sob o rigor desse estado lastimável, eu me encontrava na Faculdade de Filosofia – UFBA em Salvador na década de 90 em estado desumano, vindo do interior.

Lendo Nietzsche e tantos outros filósofos que me deram as primeiras noções sobre estética que me influenciam até hoje como artista plástico autodidata e como o ser humano que eu sou.

Foi da dor de passar fome que surgiu a necessidade de ser inventivo, pois sempre soube que há dores que nos fazem calar, há dores que nos fazem falar e há dores que nos fazem criar. Com essa dor causada pela fome que eu passava, senti a necessidade de criar. E criei o que eu chamo de poético através da feiúra que impregnei com giz de cera de cor preta, rabiscos, rascunhos, esboços com traços fortes e simples. E no papel, rostos de mulheres deformadas que se distanciam da lógica dominante dos padrões de beleza que ainda estão e permanecerão por aí afora estagnados e influenciando com a ferrugem. De suas posturas acríticas.

As questões do ter estilo próprio, de traçar o nosso próprio caminho esculpindo no mundo o nosso próprio jeito de ser são atrofiadas por esses padrões excludentes.

E esses desenhos feitos envelheceram nas gavetas e empoeirados pela passagem do tempo que deixou as suas marcas, por mais de duas décadas. Ficaram esquecidos que nem o próprio Nietzsche e tantos outros filósofos estudados por mim no decorrer de minha vida conseguiram fazer com que eu colocasse esses desenhos em telas tornando uma série de pinturas.

Foi quando surgiu um curso de História da Arte ministrado por Aldo Tripodi, professor da UNEB, crítico de arte e mestre em Teoria e História da Arte EBA/UFBA. Com esse contato surgiu a leitura do texto “A poética do feio” cujo texto remete ao livro de sua autoria “Sante Scaldaferri – Uma Poética do Feio”, onde o autor analisa a obra deste artista que faz um viés pelo tema que o autor destaca que me alargou horizontes relacionados ao meu modo de pensar e sobre o que eu pensava que sabia sobre estética, sobre beleza, sobre o belo, sobre o poético e sobre arte.

Esse texto fez com eu tirasse os tais esquecidos desenhos das empoeiradas gavetas e fizesse uma série intitulada pelo teor do texto do professor Aldo Tripodi. É uma série de 20 pinturas em acrílica sobre tela com 1m x 1,50m com o uso de apenas um só pincel e a predominância da cor negra, sem misturas com outras tintas ou tonalidades. Essa simplicidade técnica toma corpo sobre a superfície branca de toda extensão da tela. São traços simples e vigorosos que dão a deformidade a rostos de mulheres marcadas por não se padrão de beleza vigente.

A partir da degustação poética do texto do professor surgiram questionamentos sobre os padrões de beleza espalhados através da história da própria beleza e seus padrões estabelecidos negligentemente aviltantes por essa globalização perversa que tanto avilta mulheres e homens que se deformam se descaracterizam e se desnorteiam do que há de mais sagrado em sua vida: a sua singularidade.

Em busca de uma perfeição rigorosamente imposta pelos meios de comunicação que abusa da ingenuidade do senso comum no qual se estabelece a grande maioria de mulheres e homens iludidos pela busca do corpo perfeito. Essa busca alucinada por se padronizar tudo: corpo, bunda, caras, bocas e pernas deixam despercebida a beleza da essência de cada ser humano no mundo em que vive. Em detrimento dessa essência humana, a busca pelo ter toma corpo e avança tenazmente sobrepondo-se às questões ontológicas de cada um onde cada caminho é traçado por tais pessoas. Mas as que estão às cegas sobrevivem a esse turbilhão alucinante em busca de solucionar um problema criado para todo aquele que não se encontra ou não quer se encontrar pelos corredores estéreis da força da imposição dos padrões que limitam, anestesiam e engessam a possibilidade de cada um desses seres de se enxergarem como humanos que realmente são com iluminação própria de verdade, de beleza interior.

E iludidas por se tornarem fantoches manipulados pela invenção de um padrão, costuram-se com as mais drásticas posturas em busca dessa aceitação quando, na verdade, o grande incômodo causado por quem não se aceita pela força imposta criação padronizada de como cada ser humano se torna um objeto a preencher ruas, praças e avenidas como rebanhos em busca de uma perfeição que não existe, mas que preenche as lacunas pernósticas do lucro perverso e desumano.

O texto “A poética do feio” do professor Aldo Tripodi que se fez como causa dessa série de pinturas em preto e branco, foi a causa que fez com eu esse instante poético se tornasse eterno em cada pessoa que se questiona diante dessas pinturas com linhas sem rebuscamento técnico, acadêmico e sem nenhum compromisso com os modismos das artes e sem o propósito de querer agradar.

A série de pinturas intituladas “a poética do feio” se faz caracterizada pela teimosia e ousadia inventiva do criar. As pessoas que se tornam coisas ou se deixaram dominar pela lógica e pelas rédeas da alienação se apresentam diante das obras. O não enquadrar-se nos porões dos padrões edificados estonteantemente é o que faz com que sejam taxados de feios. A elite determina o que é beleza, o que é feio, o que é bonito, o que é belo e o que é brega.

A imposição do ser bonito por pertencer a essa lógica imposta deteriora e avilta mulheres e homens que sem reflexão crítica e filosófica mergulham nesse oceano de hipocrisia alicerçado pelo poder midiático que, entre essas e outras imposições, ainda quer que se compreenda a felicidade através do pertencimento obrigatório, desse padronizar-se que engrossa as filas dos rebanhos de mulheres e homens objetos-coisa sem o crivo sagrado do seu jeito de ser singular. E objetos coisificados passam a fazer parte dessa lógica perniciosa e obrigatória, desse padrão de beleza que aí está: sem o poético como fundamento ou alicerce, prevalecendo o jogo subalterno do pertencer ao rebanho pelos corredores sujos, imundos da mediocridade que essa elite pensa, traça e determina.

Raimundo Carvalho – UFBA. É pós-graduado em Educação (FES-UNEB, Serrinha), professor de Arte e Filosofia do CEPCS – Teofilândia e COOPEISE – Serrinha e diretor de arte da ONG Fulô da Caatinga (Teofilândia, BA).

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Nesse exato momento, interrompo esse relato, pois acabo de receber um e-mail de meu amigo e poeta Bernardo Linhares a reprodução de um trabalho meu de fase mais recente, que não se enquadraria neste texto se não fossem os carinhosos versos que a acompanham. Fica registrado o meu agradecimento.





Devoto da Beleza

Quando o belo

escalda o ferro,

faz do feio, o mais bonito.

Popular é o erudito!



Bjs, BL

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