Este Blog tem por função abrir reflexões e visibilizar o que se produz de arte contemporânea na Bahia. Sua estratégia principal é criar interlocuções entre artistas, críticos, curadores, poetas e pensadores da cultura de variados eixos de interesses. Este espaço será depositário de variadas formas de pensamentos que ajudem na compreensão dos processos contemporâneos que formam o perfil das ações culturais baianas e suas significações dentro do panorama brasileiro. Vauluizo Bezerra

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

AYRSON HERÁCLITO: O PINTOR E A PAISAGEM Beto Heráclito Mestre em História UFBa Doutorando em História social USP Professor de História da Bahia UEFS

Ayrson Heráclito me disse certa vez que o suporte nas artes plásticas não existe. “O que existe são estratégias que materializam as energias criativas da cultura”. Informado por esse conceito é que comecei a pensar essa sua fase de investigação dos materiais orgânicos. Açúcar, carne, dendê, portanto, são estratégias (políticas, eu acrescento porque culturais) quando transfiguradas em arte. Ayrson Heráclito, então, além de um pintor é um militante da criação, da investigação sensória daquilo que nos marcou a ferro e fogo. São das dores, das nossas feridas que a sua obra nos fala. Dor brasileira. Dor baiana. Dor sem nenhuma autonomia, dor colada ao mundo como a arte sempre o foi. Dor historicizada, destronada de toda possibilidade universalizante. Dor sem o risco do estético. A dor da pintura e dos seus incômodos.
Informado pela cultura que o fez compreender sujeito, compreendo Ayrson Heráclito como um barroco. Barroco não no sentido estilístico, como compreendido pela História da Arte, mas como “substância básica de toda uma nova síntese cultural”: a sociedade brasileira. Exaltações, contradições, ilusões de grandeza, êxtase festivo, exuberância, monumentalidade, desespero, horror à miséria1, enfim todos os elementos do nosso barroquismo são apresentados por Ayrson ao longo dessa sua empreitada com os materiais eleitos pelas suas estratégias criativas. Materiais emprenhados de sentidos históricos que por si só nos exige a experiência, nem sempre fácil, da desconstrução.
Na “fase açúcar” nada de doce foi contado. O que chama a atenção do artista é a crise do antigo sistema colonial português, momento que, para ele, os “segredos internos” da identidade cultural brasileira passam a se revelar. Toda essa cênica dos sentidos onde nos reconhecemos brasileiros foi problematizada nas obras, através de evocações do efêmero, do díspare, do sentir-se estrangeiro em seu próprio país. Isso é facilmente aferível na utilização de materiais pouco nobres, como o enxofre, os coleópteros (popularmente rola-bostas), óleo de cravo, rapadura, mel e mica. A instalação “Segredos Internos” (1992)2 sintetiza bem esse momento. A obra apresenta um barco partido ao meio em clara alusão ao Antigo Sistema Colonial e o avanço capitalista que irá destruí-lo. Não é à toa que o poeta barroco Gregório de Mattos é chamado para ajudá-lo nessa empreitada. Gregório não só registrou em seus poemas esse momento como o viveu com intensidade trágica. Desmontando falsas acomodações e ideologias, o passado é posto num movimento autofágico que, renovado pela experiência do artista se constitui num “entre-lugar contingente, que inova e interrompe a atuação no presente”.3
Se com o açúcar Ayrson Heráclito ainda busca o recurso da alegoria amparada na poética de Gregório de Mattos, a utilização da carne sinaliza para questões que não podem ser tratadas utilizando apenas o recurso da representação. A carne utilizada é uma carne culturalmente informada pela população do nordeste brasileiro: a carne de charque. Ela, por si, nos diz sobre a comida, isto é, o alimento significado por aqueles que o transformam em hábito alimentar. O hábito do consumo da carne de charque, por seu turno, remete a temáticas próprias do nosso universo cultural como a seca, a fome, a comida pouca. A carne desidratada e salgada que não apodrece facilmente, que pode ser parcimoniosamente utilizada pelas populações pobres do nordeste brasileiro. Sua utilização pelo artista é inusitada: ele a transforma em roupas, produzindo uma coleção completa de trajes e adereços masculinos e femininos que são apresentados num circuito de moda, conhecido como Barra Faschion (2000). A inspiração na Werable Art é apenas aparente (ou referente). O que o artista busca é colocar a dicotomia necessidade x supérfulo, glamour x miséria, ao tempo que convoca o espectador para refletir sobre os limites do vestível, as possibilidades da moda e a sua relação com o contexto social na qual se insere.
Fazendo parte de um amplo projeto de intervenção, teoricamente embasado no conceito de escultura social do Joseph Beyus, outras ações se incorporam ao “projeto carne”4. A performance “A Transmutação da Carne”, apresentada no Instituto Cultural Brasil Alemanha (2000), por exemplo, quer discutir a violência contra o corpo. Utilizando-se de registros de torturas sofridas por escravos no Brasil, relatos de suplícios analisados por Michel Foucault quando estudou a História dos sistemas punitivos no Ocidente, o público mais uma vez é convocado, parafraseando Beyus, a olhar a sua própria ferida. Uma ferida que pode ser estetizada, transmutada, mas nunca esquecida. E a dor do corpo escravo, marcado a ferro e brasa pelos seus senhores, encontra ressonância na miséria nordestina: fome e tortura são apresentadas, na ação, num churrasco humano como a nos dizer do lugar do homem dentro da gramática de desigualdade que constitui a sociedade brasileira.
Cerca de 800 quilos de carne foram utilizados nas intervenções, que também contou com o um desfile público dos modelos pela zona central da cidade de Salvador (Praça da Piedade e Avenida Sete), onde os transeuntes eram inquiridos sobre vestir ou não vestir uma roupa de carne. Mas o momento crucial da obra era devolver ao material o seu significado original de comida. Comida apreciada na feitura de pratos popularmente cultuados como a feijoada. É interessante salientar que o desdobramento e a dinâmica da miséria nordestina muitas vezes afasta pratos populares do seu consumidor de origem. Hoje nem mesmo a carne de charque, outrora alimento dos mais pobres, pode chegar a mesa de muitos lares (quando existem) nordestinos. Fruto de uma lógica perversa de aprofundamento da miséria, sempre construímos, no Brasil, infinitas possibilidades de mais pobres.
Tentando dar visibilidade a fome no nordeste como um problema social, a carne é distribuída a comunidades carentes e associações filantrópicas, no intuito de denúncia. Os recibos e as cartas de agradecimento das referidas instituições enviados ao artista são transformados em obra de arte: Os documentos-obra. A obra de arte agora, nesse gesto, está pronta. Volta a cumprir o seu desejo original de humanizar o mundo.
No processo de investigação dos materiais orgânicos, Ayrson Heráclito apresenta publicamente, pela primeira vez, a sua experiência com o azeite de dendê na Bienal do Recôncavo. O trabalho chamava-se “Kiry, Beuys, Salvador”. Utilizando-se de carne de charque, azeite de dendê e estampas populares de santos (12 imagens repetidas do Sagrado Coração de Jesus), o artista tenta atualizar referências cristãs levando em conta o universo místico baiano, ao tempo que atribui a cada uma das imagens a autoria de diversos fenômenos sociais contemporâneos. “Criador dos direitos autorais”, “Inventor do HIV”, “Inventor da cola do sapateiro”, etc. Nesta experiência o azeite de dendê é explorado nos seus aspectos físicos (densidade, cor, volume) bem como nos seus aspectos simbólicos, visto a sua importância ritual para as religiões afro-baianas. Kiry faz alusão as dores humanas universais e ao desejo de sagrado que elas evocam, porém ele é ressignificado pelo catolicismo popular baiano na figura do Sagrado Coração de Jesus que também é Oxalá, um deus negro. É exatamente aqui que podemos compreender a opção por Joseph Beyus como inspiração teórica. A experiência de ressignificação em Beuys é arbitrária. Ele transforma ícones da cultura em fetiches estéticos. Para Heráclito isso aproxima o fazer artístico das dinâmicas e sincretizações da cultura baiana. Daí o afastamento, como solução teórica, da imagem dos signos ordenados, dos signos dentro da paisagem urbana tão a gosto da pop art e, mais especificamente, Andy Warhol. A arbitrariedade,a contradição, a falta de lógicas ordenadoras e planos discursivos coerentes, constantes na cultura baiana aproxima-a, no plano das artes plásticas, segundo Heráclito, do ultra-romantismo, do expressionismo, funda-a nos planos do barroco. E é por esse espelhamento com a cultura que o artista define os rumos do seu fazer artístico.
Movido por essas convicções, o azeite de dendê passa a ocupar um lugar central no seu processo investigativo. A polivalência de seus usos, a ubiquidade da sua presença nas regiões baianas diretamente envolvidas com a escravidão e tráfico negreiro, empresta sentidos múltiplos e densos ao material e é apropriado pelo artista como matéria-prima central para se pensar o ethos baiano. A importãncia atribuída ao óleo de palma pelas religiões afro-baianas – o “sangue vegetal que é oferecido às divindades em uma grande parte de seus rituais -, emprenha-o de sentidos abrangentes e múltiplos. As distintas dramaturgias sociais, as paisasgens, suas estéticas e contra-estéticas (convenções de gosto), as reverberações rituais associadas ao passao redivivo do mundo dos senhores e escravos, são postas em movimento quando focamos a redenção do azeite de dendê na sociedade baiana, que o elegeu, contemporaneamente, como representante oficial da sua gastronomia.
Neste momento, também, o artista busca refletir/iconografar uma outra questão diretamente associada ao material, a saber: como pensar os negros americanos na realidade pós-colonial? Como se constitui, na pós-modernidade, as formas de interferência política dos negros, suas diferente ações afirmativas, suas distintas gramaticas interativas, suas ecologias de pertencimento?
Os primeiros resultados desse processo pôde ser apreciado na “Bomba de Azeite”, apresentada na Mostra dos Artistas Baianos, promovida pelo Museu de Arte Contemporânea/Universidade de São Paulo (USP), (1995), na obra “Divisor” (Bienal do Merco-Sul - 2001) e na exposição “Ecologia de Pertencimento” (2002). Constante de três obras, esta intervenção elege o oceano Atântico como o centro de reflexão das questões propostas. E não à toa. Inspirado pelo sociólogo Paul Gilroy (o conceito ecologia de pertencimento é desse autor), Ayrson também acredita ser o atlântico o útero gestor da categoria racial negro. São nos navios negreiros, direta ou indiretamente envolvidos com a escravidão moderna, que essa forma de pertença entre sujeitos de fenótipos raciais parecidos se funda. Haveria negros, no sentido político do termo, se não houvesse escravidão e as políticas de racialização que ela engendrou?
As dinâmicas culturais específicas das diferentes experiências dos negros na América, as distintas políticas interativas foram emblematizadas, no caso baiano, pelo azeite de dendê. Na obra O Atlântico Negro – Divisor (220x050x015), um grande aquário de vidro é preenchido por uma mistura de água, sal e azeite de dendê. A heterogeneidade comum à solução de água e óleo ajuda a contar sobre o caráter díspare dessa experiência. Numa inversão arbitrária de sentidos o azeite negro está por cima da água salgada (o mar) que o subjugou cativo nos tempos do tráfico escravo.
Na obra “Regresso a pintura baiana”, um painel monumental (900x280x140) pintado com azeite de dendê utilizando-se da técnica dripping -, o artista busca explorar as potencialidades do óleo enquanto tinta. Sua luminosidade, textura, gradiência; os efeitos arbitrários conseguidos com o uso são largamente explorados. A cor, o cheiro, a exuberância da obra incomoda. Nos remete a zonas ancestrais do nosso inconsciente, ao tempo que parece perguntar, dramaticamente, sobre a inserção dos negros na sociedade baiana.
Na obra “Moqueca – O Condor do atlântico”, uma grande peixe (arraia jamanta, com 120 kg) foi exposto na abertura da mostra, depois tratado por um peixeiro e apresentado em perfomance no dia posterior, com a feitura pública de uma moqueca pelo artista e a sua equipe. A arraia, na Bahia, é conhecida como um peixe de pouco valor (peixe de segunda) e é largamente utilizada pelas populações afro-descendentes para a confecção desse prato típico: a moqueca. O título da exposição, por outro lado, faz referência direta ao poeta abolicionista baiano Castro Alves que associou os condores aos anseios de liberdade dos negros. A arraia também lembra um pássaro, que sem está no ar e sim no mar, transfigurou a experiência escrava em exercício de invenção de liberdade. Certamente que a moqueca é um exemplar gastronômico do legado artístico dos negros à experiência americana.
Por fim, resta-me confessar que a experiência de acompanhar o artista Ayrson Heráclito nesses experimentos com os materiais orgânicos, me fez refletir sobre as possibilidades da linguagem plástica se tomarmos como ponto de vista o lugar de sua inserção. No caso dessa fase de trabalhos confeccionados com materiais orgânicos, o açúcar, a carne de charque, o dendê), para além do seus usos, sua condição objetal de suporte expressivo -, acionam por si só signos que ampliam a nossa compreensão do mundo do qual fazemos parte. Utilizá-los em arte é garantir a expansão das suas significações, é buscá-los enquanto experiência fundante de processos sociais mais amplos, questionando suas políticas. No caso do dendê, por exemplo, a sua utlização como matéria-prima e expressiva de todo o processo criativo tenta dar conta das nossas mitologias de origem, as suas transfigurações rituais, estéticas, corporais, gastronômicas, etc. Pensar o dendê como emblema das políticas de identidade e as suas dinâmicas, na constituição de comunidades mais substantivamente democráticas do que a raça.
Assim como a fluidez atlântica, o dendê também evoca mistura, movimento, texturas, memórias. Sagrado e profano, distante e próximo, combustível e cosmético, branco e preto, pobre e rico se acordam sob novas lógicas na cartografia de utilização do óleo de palma. Atento a tudo isso está o pintor Ayrson Heráclito, modelando e descobrindo a sua paisagem. Dizendo-se dentro da paisagem e ao mesmo tempo autor da sua condição arbitrária, o artista busca ampliar os sentidos dessa experiência, dinamizando possibilidades e pontos-de-vista.

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